Lidando com a seletividade alimentar: A jornada de uma família atípica

Lidando com a seletividade alimentar: A jornada de uma família atípica

Por Julia Geovana

Superar a seletividade alimentar infantil é um desafio comum de várias mães, pais e cuidadores de qualquer criança, mas quando se trata de famílias atípicas, essa pode ser uma realidade ainda mais complexa. Crianças com autismo, por exemplo, frequentemente enfrentam sensibilidades sensoriais que podem tornar a introdução de novos alimentos uma experiência angustiante. Os desafios vão além da simples recusa de um alimento: eles envolvem emoções, sensações, rotinas e preferências alimentares rigidamente estabelecidas e muitas vezes com pouquíssima abertura para mudanças.

Além do Transtorno do Espectro Autista (TEA), crianças com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC), também podem apresentar restrições alimentares. Além de questões relacionadas à impulsividade ou fuga da socialização gerada pelo momento das refeições, a simples textura, cheiro, cor ou aspecto de um alimento pode causar a repulsa e rejeição da criança, e contornar essa resistência para conseguir manter os filhos saudáveis não é a tarefa mais simples.

Rafaella, associada da CAURN, vivenciou na pele essa realidade desafiadora com seu filho Rafael, de 7 anos, que é autista. Segundo ela, até os dois anos e meio, Rafael tinha uma dieta bastante variada, incluindo o consumo de vegetais, mas a partir desse momento, sua alimentação começou a se restringir. Hoje, ele se alimenta de basicamente 5 a 6 alimentos. “Ele não tem a mesma abertura que eu tenho com alimentação. Pelo contrário, das metas que ele tinha para atingir em relação às limitações que ele tem por conta do autismo, essa é a única que ele não avançou.”

A associada conta que seu filho foi restringindo cada vez mais seu repertório nutricional, deixando ela cada vez mais limitada para mantê-lo nutrido. “Ele começou a preferir alimentos secos, deixando de consumir feijão, arroz e proteínas como carnes, frango e queijos. Ele não tolerava a textura, o cheiro, a presença.” Diante das dificuldades, Rafaella e sua mãe começaram a oferecer alimentos que não eram os ideais em termos de nutrição, apenas para garantir que Rafael se alimentasse. “No desespero, começamos a oferecer coisas que não eram tão nutritivas, mas que davam energia, como pão, biscoito, pipoca de milho, porque pelo menos tava vivo.”

Mesmo com a resistência da criança, ela nunca deixou de expor o filho a uma grande variedade de alimentos, para estimular uma abertura gradual a novas possibilidades. “Procuramos ter todo um cuidado e pisar em ovos com ele, para não prejudicar o mínimo que ele já avançou e atrapalhar o consumo de outros alimentos. Mas certamente vai demorar um pouco para ele conseguir se apropriar dessa alimentação mais equilibrada.”

Foi buscando contribuir para o bem-estar de Rafael que sua família se uniu para buscar uma solução para a seletividade. Ao perceber que ele aceitava os alimentos secos com maior facilidade, Rafaella conta que sua mãe resolveu criar um pão caseiro, para ser menos prejudicial que o de supermercado. “Além da farinha, ela começou a colocar ovo, que já era alguma proteína, já que ele não comia nenhuma, e aos poucos foi acrescentando mais coisas na receita tentando suprir esses nutrientes.”

E não foi do dia para a noite: a avó de Rafael testou várias possibilidades diferentes de ingredientes até chegar na receita perfeita. “Ela foi testando, diminuindo uma coisa e acrescentando outra até ficar bom, e ele foi aceitando, aceitando, até que, entre erros e acertos, do desespero, surgiu esse pão.” A mãe atípica revela que o prato virou rotina na alimentação da criança, e pelo menos uma vez por semana, é preciso preparar e congelar o alimento. “São dois pães bem grandes que ela faz, aí a gente vai porcionando pra ele comer todos os dias. Ela cozinha um almoço com o que tem em casa: arroz, feijão, legumes, carnes, folhas, sementes, bate tudo no liquidificador e mistura com farinha, fermento e ovos, criando uma massa de pão. Não é aquele pão de padaria, e ainda é calórico, mas fornece a base nutricional que ele precisa.”

A nutricionista da CAURN, Cassiana Araújo, explica que é preciso ter paciência para conseguir ter algum avanço na alimentação infantil, especialmente de crianças atípicas. “Trabalhar a seletividade alimentar é algo que não é do dia pra noite, precisa de um tempo. São crianças, ou até mesmo adultos, que já têm toda uma história de não comer aquele alimento.” Ela reforça a importância de persistir para se adaptar a essas dificuldades, e dá dicas para outros cuidadores atípicos que enfrentam o mesmo que Rafaella. “Primeiro, é importante não desistir. Tem crianças que gostam muito de suco, então os pais podem tentar incrementar outros ingredientes naquele suco, por exemplo. Ou tentar fazer receitinhas junto com a criança pra que ela toque, pegue, manipule, e ali ela vai tendo uma relação diferente com o alimento. A estratégia de Rafaella é excelente. É tentar, no que a criança gosta, ir acrescentando o que ela precisa.”

Mais do que se preocupar com a alimentação dos filhos, é fundamental que as mães e pais atípicos também priorizem cuidar da própria dieta, contribuindo inclusive, para promover um bom exemplo para as suas crianças. A alimentação saudável foi tema de palestra da nutricionista da CAURN Cassiana Araújo para o Grupo Acolher, iniciativa de apoio a mães, pais e cuidadores de crianças atípicas associados à operadora.

A psicóloga e mãe atípica Clara Carvalho, responsável pelo grupo, defende a importância desse autocuidado para cuidadores de indivíduos neuroatípicos. “Devido às demandas que a gente tem no nosso dia a dia por causa dos nossos filhos, a gente acaba negligenciando nosso próprio cuidado, e isso inclui a nossa alimentação. Então parar um momento e falar sobre alimentação saudável faz com que a gente lembre que a gente precisa se cuidar também, para poder cuidar melhor.”

Investir tempo em cuidar de si mesmo, seja através de uma alimentação equilibrada, da prática de atividades físicas, ou de garantir um sono tranquilo, é essencial para cuidar de outra pessoa, de acordo com Cassiana. Ela alerta os cuidadores atípicos para a necessidade de se priorizar. “Geralmente quando a gente olha para os pais atípicos, eles vivem em uma loucura intensa pra colocar a criança em várias atividades e estímulos, e aí esquecem de si. Mas como é que eu vou cuidar de alguém se eu não tô me cuidando direito?”

A jornada de Rafaella com seu filho Rafael ilustra os desafios complexos que muitas famílias atípicas enfrentam em relação à alimentação. Apesar das dificuldades, é possível encontrar alternativas criativas para atender às necessidades nutricionais das crianças. O Grupo Acolher, iniciativa da CAURN, desempenha um papel fundamental nesse processo, ao fornecer apoio e recursos para mães, pais e cuidadores de crianças atípicas, promovendo um espaço seguro para compartilhar experiências e estratégias.

Gostou do conteúdo?! Compartilhe!
whatsapp button